novembro 23, 2011

UMA POTIGUAR EXCLUIDA DA HISTÓRIA

JÚLIA AUGUSTA DE MEDEIROS
A comovente história de uma mulher à frente do seu tempo

ROCAS-QUINTAS
O TRISTE FIM DE JÚLIA AUGUSTA DE MEDEIROS

Por
Itaércio Porpino

Natal, década de 60, em algum lugar entre os bairros das Rocas e Quintas. Garotos se divertem provocando uma senhora trôpega, suja e maltrapilha. Os meninos fazem coro: "Rocas-Quintas"! E ela, com o dedo em riste, revida: "Me respeitem, que eu tive vida importante"! A zombaria continua, e a mulher, que se tornou folclórica por fazer todo santo-dia, a pé, o mesmo itinerário da linha de ônibus Rocas-Quintas (daí o apelido), retoma as passadas ligeiras e nervosas, parando sempre para catar lixo e restos de coisas podres.

Caicó, final da década de 50. Júlia Augusta de Medeiros, uma das mulheres pioneiras no jornalismo e na educação no Rio Grande do Norte nos anos 20, feminista, mulher de idéias avançadas, com participação destacada na vida pública e política do RN, tendo sido uma das primeiras mulheres a votar no Estado e exercido dois mandatos como vereadora, começa a apresentar lapsos de memória e a perder a sanidade mental. O estado de saúde vai se agravando e ela, que desafiara a sociedade assumindo uma postura ousada, termina seus últimos anos deprimida em Natal, no mais completo ostracismo, perambulando pelas ruas feito mendiga.

Júlia Medeiros, educadora e jornalista que um dia teve lugar cativo nas rodas de intelectuais, gozando da amizade e apreço de gente como Câmara Cascudo e Palmira Wanderley, é a mesma Rocas-Quintas. Em um minucioso trabalho investigativo, o jornalista natalense Manoel Pereira da Rocha Neto, conseguiu unir os dois capítulos extremos dessa história e contá-la na íntegra pela primeira vez. "Júlia teve um passado obscuro, que ficou perdido, pois enquanto Rocas-Quintas ela falava quem tinha sido e ninguém acreditava. As pessoas a insultavam e a depreciavam", diz Manoel.

O objetivo de sua tese de doutorado no Departamento de Educação da UFRN, dentro da base de pesquisa Gênero e Práticas Culturais, era (e foi) falar das práticas pedagógicas de Júlia enquanto educadora, mas o jornalista acabou também mergulhando fundo na vida da personagem à medida que descobriu história tão rica e dramática.  

 
Centro de Caicó/RN, década de 20 do século XX. Foto: Manoel Ezelino

O autor, além de conseguir conceito máximo com a tese, acabou quitando uma dívida com a memória de Júlia Medeiros. "Em cinco anos de pesquisa, não encontrei quase nada em livro, a não ser algumas poucas citações, e também uma monografia do curso de História, em Caicó, sobre Júlia, mas muito superficial. A casa em que ela morou em Caicó foi demolida e no lugar existe atualmente uma boutique. Já a casa em que ela viveu em Natal, na rua da Misericórdia, Cidade Alta, foi demolida para a construção de uma praça. Até o túmulo e seus restos mortais, no Cemitério Parque, em Caicó, foram violados e extraviados. Ela não tem direito sequer a ser lembrada como cidadã no Dia de Finados. Em sua cidade natal, deu nome a uma rua e a uma escola. Foi só", fala. 

Imagem antiga do Mercado Público de Caicó - inaugurado em 23/02/1918

A história de Júlia Medeiros, do nascimento à morte (1896 a 1972), foi totalmente reconstituída pelo jornalista Manoel Pereira da Rocha Neto e contada com riqueza de detalhes em seu trabalho. A maior parte das informações ele coletou com pessoas que foram vizinhas de Júlia, em Caicó e em Natal, e com os ex-alunos dela. "Foi uma pesquisa difícil. A família dela ofereceu muita resistência. Somente uma sobrinha sua, Julieta Dantas, que vive em Caicó, ajudou, cedendo inclusive um farto material fotográfico", conta Manoel, que chegou a pagar para conseguir uma cópia do atestado de óbito de Júlia Medeiros/Rocas-Quintas.

"A família não quis ceder, então fui até o 4º Ofício de Notas e paguei por uma cópia", conta Manoel. O laudo deixa em dúvida se Júlia cometeu suicídio, mas o jornalista acredita que ela tenha mesmo se matado. "Acho que o ostracismo e a depressão contribuíram para isso. Há um detalhe importante: Júlia morreu na madrugada do dia seguinte ao seu aniversário. Acho que em sua loucura ela pode ter tido um momento de lucidez e lembrado a data". 

 "O vestir-se bem - desejo de distinção social na Caicó de 1939"

E esse não teria sido o único momento de lucidez em sua fase de loucura e mendicância. Certa vez, conta Manoel, ela ficou parada observando por bastante tempo a vitrine de uma loja de roupas. Quase foi presa ao tentar entrar. Isso só não aconteceu porque na hora passou uma pessoa de Caicó que a conhecia e contornou a situação. "Penso que ela estava recordando sua época de moça. As moças da alta sociedade caicoense só vestiam as roupas feitas por Maria do Vale Monteiro, costureira mais famosa da cidade. Mas antes Júlia tinha que vestir e aprovar. Por causa do corpo bem feito, ela era uma espécie de manequim no município".

O jornalista conta que, antes disso, Júlia havia adquirido uma máquina Singer pensando em fazer os próprios vestidos, como forma de relembrar a época áurea. Ela comprou em dez vezes sem juros, na Loja Natal, o que já era um sinal também de sua fragilidade financeira.

"Júlia veio para Natal já doente e, aposentada e deprimida, começou a perambular pelas ruas, levando sempre junto ao corpo um monte de penduricalhos. A cada dia seu estado mental ia se agravando. Ela já não cuidava da higiene, catava lixo e andava com roupas em trapos. Ninguém acreditava quando dizia ter sido uma pessoa importante", diz Manoel.

A aposentada Lúcia Bruno Damasceno mora na rua da Misericórdia, onde Rocas-Quintas viveu de 1960 até 1972, e confirma a informação do jornalista: "Ela vivia na rua catando coisas e entulhava tudo num porão em casa. Costumava dizer que foi uma mulher de destaque em Caicó, mas ninguém acreditava".

Participação ativa na vida pública - Julia Medeiros votando em Caicó/RN

EXCLUIDA DA SOCIEDADE E DA HISTÓRIA

Exceção entre as meninas de seu tempo, Júlia Medeiros teve a sorte de pertencer a uma família abastada e de visão pedagógica diferente da maioria das famílias do início do século 20. O pai, Antônio Cesino Medeiros, detentor de grandes propriedades de terra em Caicó, sendo a maior e mais próspera delas a fazenda Umari, onde Júlia nasce no dia 28 de agosto de 1896, cuida desde cedo para que a filha tenha acesso à educação. A menina aprende as primeiras letras em casa com um mestre-escola e depois é mandada para estudar em Natal.

Júlia deixa Caicó no ano de 1910. Com 13 anos, enfrenta uma jornada de oito dias em lombo de burro. Era uma comitiva em que estavam outras duas moças, Olívia Pereira e Maria Leonor Cavalcanti. A futura feminista hospeda-se em uma casa na Ribeira - a do professor de português João Vicente - e passa a estudar no Colégio Imaculada Conceição, onde conclui o ginásio. Em 1920, faz a seleção para a Escola Normal de Natal. 

Antiga praça Jose Augusto e o colegio Senador Guerra - Caicó/RN

Forma-se em 1925 e, um ano depois, volta a morar em Caicó, passando a lecionar no Grupo Escolar Senador Guerra, a mais conceituada instituição de ensino do município. A essa época já escrevia para o "Jornal das Moças", periódico que logo passa a redigir sozinha com a saída da fundadora, Georgina Pires. A publicação, um marco no jornalismo feminino no Rio Grande do Norte, dura de 1926 a 1932.
Júlia Medeiros também já participava ativamente da vida pública de Caicó, envolvida com a elite intelectual e política da cidade. Ela foi amiga, entre outros, de Juvenal Lamartine, senador e governador em meados da década de 20, e de José Augusto Bezerra de Medeiros, governador que dominou a política no RN até 1930. 
Antiga Prefeitura de Caicó/RN  

Considerada exímia oradora, Júlia notabiliza-se por questionar, em seus discursos de improviso, a condição da mulher da década de 20 - cuja vida resumia-se aos afazeres domésticos. Em suas falas em público, exigia, principalmente, o direito à educação e à cidadania. Sua amizade com a feminista Berta Lutz e suas idas ao Rio de Janeiro - onde tomava conhecimento da modernidade - fortaleciam ainda mais seus ideais. Júlia choca a sociedade caicoense com seu comportamento avançado. Ela passa a usar roupa preta - cor condenável a não ser em ocasião de luto - calça jeans e costas nuas. Ao aparecer nas ruas dirigindo um automóvel - um ford 29 (baratinha) que compra no Rio de Janeiro com dinheiro do próprio trabalho - promove um escândalo. Choca mais uma vez a sociedade ao recusar um pedido de casamento e ao ir morar sozinha, na casa de número 157 da rua Seridó.
O preço da "ousadia" acaba sendo alto. Júlia passa a ser excluída e alvo de preconceito. Na rua, é perseguida pelas crianças, que entoam uma cantoria assim: "Júlia Medeiros no seu carro ford, virou a princesa do caritó".
Antes de aposentar-se como professora, em 1958, se candidata a vereadora, sendo eleita para dois mandatos, de 1951 a 1954 e de 1954 a 1957. É nesse período que começa a apresentar lapsos de memória e a ficar perturbada mentalmente. Em 1960, a família a leva para Natal, entendendo ser essa a melhor opção. Júlia passa a morar sozinha, por vontade própria, em uma casa de frente para o rio Potengi, na rua da Misericórdia. Seu quadro de saúde vai se agravando e, na madrugada do dia 29 de agosto de 1972, aos 76 anos, morre como a mendiga Rocas-Quintas. Louca, pobre, esquecida e insultada; excluída da sociedade e da história.

...fonte...
Itaércio Porpino
(jornal Tribuna do Norte em  edição de 18 de setembro de 2005)


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26 comentários:

  1. Fico feliz ao ver resgatada a memória de uma pessoa tão brilhante. Digo brilhante porque considero brilhantismo quando uma pessoa consegue estar além do seu tempo, sem, entretanto, se preocupar com a sua condição, enfrentando a "realidade cega" dos outros. Não por acaso ela devia ser próxima de Palmira Wanderley, outra que não se furtou à história em seu tempo. Me recordo muito bem de Palmira Wanderley pois ela foi casada com um parente meu, o boníssimo Raimundo de França (também carinhosamente chamado de "Mundinho" - que havia servido à maçonaria e aos Correios em nosso Estado).
    Parabéns pela iniciativa... obrigado pelo trabalho e pela publicação. Tratarei de divulgá-la com prazer.

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Somos parentes então, Mundinho era meu tio avô, na família também teve Adherbal de França (Danilo), meu avô, um grande cronista, mas infelizmente o tempo costuma esquecer.

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    3. É QUASE SEMPRE ASSIM, A SOCIEDADE PRIMEIRO EXTERMINA OS DEPRIMIDOS, DEPOIS A PRÓXIMA GERAÇÃO LEVANTA A CAUSA MOSTRA NOVAMENTE PRA SOCIEDADE QUEM DE FATO FOI A FIGURA ,ALIA´S NESTE NOSSO BRASIL DE TUPINIQUINS O VALOR MAIOR É PÓS MORTE. EU ME PERGUNTO PORQUE CANTOR O BELCHIOR SUMIU DA SOCIEDADE E DEPOIS QUE MORREU VIROU CELEBRIDADE ?

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    4. Que excelente texto. Já que quase não conhecia nada da professora Julia Medeiros. Tenho uma amiga historiadora que fez a monografia dela nos anos 90 sobre Júlia Medeiros, mas como disse o autor do texto, um trabalho ainda muito tímido que merecia mais destaque.

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  2. Belíssimo texto! Fiquei ansioso por ler a tese do Manoel Neto por completo!

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  3. Muito bom saber de histórias de pessoas reais, a frente se seu tempo!

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  4. Será que a monografia referida é que escrevi?

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    1. Conheço uma que foi feita pela professora historiadora, Ezequielda Félix. Não conhecia outra.

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  5. Conheci bastante durante minha adolescência nas ruas do bairro ribeira e Rocas. Vi seu sofrimento diário.
    Uma pena.

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    1. Poderíamos falar sobre ela? Sou sobrinho-neto e minha mãe, sobrinha e afilhada dela, gostava muito dela, mas como casou e migrou para Campina Grande onde nasci, depois Maceió, onde moramos, perdeu o contato. Meu e-mail: camboimronaldo@gmail.com

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    2. Oi, Ronaldo, eu sou caicoense também é tenho todo o interesse pela história de sua tia-avó, sou atriz de teatro e um grupo de amigos de um grupo está muito interessado em pesquisar a história de dona Júlia.

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    3. Cheguei a vela vestida de verde e amarelo com uma faixa de rainha.
      Na frente do Antigo Palácio do Governo.

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  6. Ela morava perto da minha casa e minha mãe sempre falava sobre a sua importância.Nunca entendemos pq a família não a amparava.

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  7. Gostaria de ler a tese de Manoel Neto, o importante trabalho de resgate de pioneiros do progresso social. As mulheres do inicio do século vinte foram fermento na massa, mulheres de ação que movimentaram a historia e transformaram o país. Um exemplo também foi Tiburtina, mineira de Montes Claros, que deu o primeiro tiro da revolução de Trinta. Congratulações ao Manoel pelo belo trabalho que produziu. Sua tese faz justiça. Gosto de ler trabalho assim.

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  8. Parabéns pelo excelente trabalho digno de méritos ao resgatar a história e a vida desta mulher que o tempo e a própria história se perdeu, e que é uma das lacunas nos grandes nomes que ajudaram a construir os pensamentos e rumos da política, economia, arte, intelectualismo e a real história de um povo genuinamente potiguar. Parabéns. Estou impressionado.

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  9. Ótimo texto. Minha família paterna é de Caicó. Gostaria de ver minha avó também reconhecida pela grande educadora que foi a frente da Escola Feminina de Natal.

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  10. Belíssimo texto! Que grandeza de mulher!Só lamento pelo final da história dela aqui na terra,ter cida abandonada!

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  11. Muito me emocionou a história de Júlia Medeiros, como os preconceitos contribuíram para acabar com vidas humanas. Bastava se pensar diferente do padrão da época. Louvo o historiador que fez a pesquisa e trouxe a luz, outra vez, Júlia Medeiros.

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  12. Excelente história! Ansiosa para ler a tese desse pesquisador tão hábil e generoso com a memória dessa personagem tão ilustre na história do RN.

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  13. Talvez seja o momento de refletir e perceber que sempre existirão pessoas a frente de seu tempo, é claro que estou falando de comportamentos e atitudes construtivos, preservando a moralidade e os bons costumes. Acredito que alguém como a Júlia, educada e instruída com o melhor de nossa cultura e tendo acesso a ambientes culturais diversos e preciosos como teve, certamente era alguém que poderia ser ouvida, como o foi de fato, pois teve dois mandatos de vereadora no município. Não sei o motivo do abandono, mas ela era de fato uma intelectual da época, coisa difícil de se ver nos dias de hoje.

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  14. Olha, eu estou com uma dúvida danada se esta Rocas-Quintas da tese é a mesma que eu conheci na minha adolescência perambulando pelo centro da Cidade Alta. Por quê? A Rocas-Quintas que eu conheci vagou pela Cidade Alta até o final dos anos setenta.

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  15. Achei magnífica história, sou louco por história. Infelizmente nossa Cultura não é valorizada e nosso estado de espírito ainda é animal. Nossos governantes não dão valou a historia. Vai ser assim com eles um dia se perderam na historia. Natal cidade com histórias riquicimas mais esquecidas por todos

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  16. Não conhecia a história dessa mulher, que teve um final lamentável

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Fiz uma visita e gostei!! Passa lá você também!!!