JÚLIA AUGUSTA DE
MEDEIROS
Fotografia: Acervo Particular
UM NOME PARA FIGURAR NA HISTÓRIA POTIGUAR
A COMOVENTE HISTÓRIA DE UMA CAICOENSE À FRENTE DO SEU TEMPO
Fotografia: Acervo Particular
UM NOME PARA FIGURAR NA HISTÓRIA POTIGUAR
A COMOVENTE HISTÓRIA DE UMA CAICOENSE À FRENTE DO SEU TEMPO
O jornalista e professor Manoel Pereira da Rocha Neto lançou nesta quarta-feira (28), na Livraria Cooperativa Cultural (Centro de Convivência da UFRN), o livro “Júlia Medeiros, uma trajetória entre a Educação e a Imprensa no Rio Grande do Norte".
O livro é resultado da tese de doutorado de Manoel no
Departamento de Educação da UFRN, dentro da base de pesquisa Gênero e Práticas
Culturais. Com o título "A Educação da mulher norte-rio-grandense segundo
Júlia Medeiros (1920-930)", o trabalho foi apresentado em 2005. Naquele
ano, numa mesa de bar, o autor bateu um longo papo com o jornalista Itaércio
Porpino (hoje, editor do guia cultural SOLTO NA CIDADE) para uma matéria que seria publicada
na Tribuna do Norte em 18/09 de 2005.
O blog Potiguarte parabeniza a iniciativa que conduziu o trabalho ao formato de livro e lembra que já realizou neste espaço - por três oportunidades - postagens desta comovente história, o que a levou a ser uma das mais visualizadas no rol de postagens do Potiguarte. E, pela quarta vez, o texto
desta matéria é transcrito neste espaço. Confesso, é uma história que - merecidamente - deveria ser adaptada para o cinema! Boa leitura!
JÚLIA AUGUSTA DE MEDEIROS
UMA MULHER À FRENTE DO SEU TEMPO
Por
Itaércio Porpino
Natal, década de 60, em algum lugar entre os bairros das
Rocas e Quintas...
Garotos se divertem provocando uma senhora trôpega, suja e
maltrapilha. Os meninos fazem coro: "Rocas-Quintas"! E ela, com o
dedo em riste, revida: "Me respeitem, que eu tive vida importante"! A
zombaria continua, e a mulher, que se tornou folclórica por fazer todo
santo-dia, a pé, o mesmo itinerário da linha de ônibus Rocas-Quintas (daí o
apelido), retoma as passadas ligeiras e nervosas, parando sempre para catar
lixo e restos de coisas podres.
Caicó, final da década de 50...
Júlia Augusta de Medeiros, uma das mulheres pioneiras no
jornalismo e na educação no Rio Grande do Norte nos anos 20, feminista, mulher
de ideias avançadas, com participação destacada na vida pública e política do
RN (ela foi uma das primeiras mulheres a votar no Estado e chegou a exercer
dois mandatos como vereadora), começa a apresentar lapsos de memória e a perder
a sanidade mental. O estado de saúde vai se agravando e Júlia, que desafiara a
sociedade assumindo uma postura ousada, termina seus últimos anos deprimida em
Natal, no mais completo ostracismo, perambulando pelas ruas feito mendiga.
Júlia Medeiros, educadora e jornalista que um dia teve lugar
cativo nas rodas de intelectuais, gozando da amizade e apreço de gente como
Câmara Cascudo e Palmira Wanderley, é a mesma Rocas-Quintas. Em um minucioso
trabalho investigativo, o jornalista natalense Manoel Pereira da Rocha Neto,
33, conseguiu unir os dois capítulos extremos dessa história e contá-la na
íntegra pela primeira vez. "Júlia teve um passado obscuro, que ficou
perdido, pois enquanto Rocas-Quintas ela falava quem tinha sido e ninguém
acreditava. As pessoas a insultavam e a depreciavam", diz Manoel.
O objetivo de sua tese de doutorado no Departamento de
Educação da UFRN, dentro da base de pesquisa Gênero e Práticas Culturais, era
(e foi) falar das práticas pedagógicas de Júlia enquanto educadora, mas o
jornalista acabou também mergulhando fundo na vida da personagem à medida que
descobriu história tão rica e dramática.
O autor, além de conseguir conceito máximo com a tese,
acabou quitando uma dívida com a memória de Júlia Medeiros. "Em cinco anos
de pesquisa, não encontrei quase nada em livro, a não ser algumas poucas
citações, e também uma monografia do curso de História, em Caicó, sobre Júlia,
mas muito superficial. A casa em que ela morou em Caicó foi demolida e no lugar
existe atualmente uma boutique. Já a casa em que ela viveu em Natal, na rua da
Misericórdia, Cidade Alta, foi demolida para a construção de uma praça. Até o
túmulo e seus restos mortais, no Cemitério Parque, em Caicó, foram violados e
extraviados. Ela não tem direito sequer a ser lembrada como cidadã no Dia de
Finados. Em sua cidade natal, deu nome a uma rua e a uma escola. Foi só",
fala.
A história de Júlia Medeiros, do nascimento à morte (1896 a 1972), foi totalmente
reconstituída pelo jornalista Manoel Pereira da Rocha Neto e contada com
riqueza de detalhes em seu trabalho. A maior parte das informações ele coletou
com pessoas que foram vizinhas de Júlia, em Caicó e em Natal, e com os
ex-alunos dela. "Foi uma pesquisa difícil. A família dela ofereceu muita
resistência. Somente uma sobrinha sua, Julieta Dantas, que vive em Caicó, ajudou,
cedendo inclusive um farto material fotográfico", conta Manoel, que chegou
a pagar para conseguir uma cópia do atestado de óbito de Júlia
Medeiros/Rocas-Quintas.
"A família não quis ceder, então fui até o 4º Ofício de
Notas e paguei por uma cópia", conta Manoel. O laudo deixa em dúvida se
Júlia cometeu suicídio, mas o jornalista acredita que ela tenha mesmo se
matado. "Acho que o ostracismo e a depressão contribuíram para isso. Há um
detalhe importante: Júlia morreu na madrugada do dia seguinte ao seu aniversário.
Acho que em sua loucura ela pode ter tido um momento de lucidez e lembrado a
data".
E esse não teria sido o único momento de lucidez em sua fase
de loucura e mendicância. Certa vez, conta Manoel, ela ficou parada observando
por bastante tempo a vitrine de uma loja de roupas. Quase foi presa ao tentar
entrar. Isso só não aconteceu porque na hora passou uma pessoa de Caicó que a
conhecia e contornou a situação. "Penso que ela estava recordando sua
época de moça. As moças da alta sociedade caicoense só vestiam as roupas feitas
por Maria do Vale Monteiro, costureira mais famosa da cidade. Mas antes Júlia
tinha que vestir e aprovar. Por causa do corpo bem feito, ela era uma espécie
de manequim no município".
O jornalista conta que, antes disso, Júlia havia adquirido
uma máquina Singer pensando em fazer os próprios vestidos, como forma de
relembrar a época áurea. Ela comprou em dez vezes sem juros, na Loja Natal, o
que já era um sinal também de sua fragilidade financeira.
"Júlia veio para Natal já doente e, aposentada e
deprimida, começou a perambular pelas ruas, levando sempre junto ao corpo um
monte de penduricalhos. A cada dia seu estado mental ia se agravando. Ela já
não cuidava da higiene, catava lixo e andava com roupas em trapos. Ninguém
acreditava quando dizia ter sido uma pessoa importante", diz Manoel.
A aposentada Lúcia Bruno Damasceno mora na rua da
Misericórdia, onde Rocas-Quintas viveu de 1960 até 1972, e confirma a
informação do jornalista: "Ela vivia na rua catando coisas e entulhava
tudo num porão em
casa. Costumava dizer que foi uma mulher de destaque em
Caicó, mas ninguém acreditava".
Exceção entre as meninas de seu tempo, Júlia Medeiros teve a sorte de
pertencer a uma família abastada e de visão pedagógica diferente da
maioria das famílias do início do século 20. O pai, Antônio Cesino
Medeiros, detentor de grandes propriedades de terra em Caicó, sendo a
maior e mais próspera delas a fazenda Umari, onde Júlia nasce no dia 28
de agosto de 1896, cuida desde cedo para que a filha tenha acesso à
educação. A menina aprende as primeiras letras em casa com um
mestre-escola e depois é mandada para estudar em Natal.
Júlia
deixa Caicó no ano de 1910. Com 13 anos, enfrenta uma jornada de oito
dias em lombo de burro. Era uma comitiva em que estavam outras duas
moças, Olívia Pereira e Maria Leonor Cavalcanti. A futura feminista
hospeda-se em uma casa na Ribeira - a do professor de português João
Vicente - e passa a estudar no Colégio Imaculada Conceição, onde conclui
o ginásio. Em 1920, faz a seleção para a Escola Normal de Natal.
Forma-se
em 1925 e, um ano depois, volta a morar em Caicó, passando a lecionar
no Grupo Escolar Senador Guerra, a mais conceituada instituição de
ensino do município. A essa época já escrevia para o "Jornal das Moças",
periódico que logo passa a redigir sozinha com a saída da fundadora,
Georgina Pires. A publicação, um marco no jornalismo feminino no Rio
Grande do Norte, dura de 1926 a 1932.
Júlia Medeiros também já
participava ativamente da vida pública de Caicó, envolvida com a elite
intelectual e política da cidade. Ela foi amiga, entre outros, de
Juvenal Lamartine, senador e governador em meados da década de 20, e de
José Augusto Bezerra de Medeiros, governador que dominou a política no
RN até 1930.
Considerada exímia oradora, Júlia notabiliza-se por
questionar, em seus discursos de improviso, a condição da mulher da
década de 20 - cuja vida resumia-se aos afazeres domésticos. Em suas
falas em público, exigia, principalmente, o direito à educação e à
cidadania. Sua amizade com a feminista Berta Lutz e suas idas ao Rio de
Janeiro - onde tomava conhecimento da modernidade - fortaleciam ainda
mais seus ideais. Júlia choca a sociedade caicoense com seu
comportamento avançado.
Ela passa a usar roupa preta - cor
condenável a não ser em ocasião de luto - calça jeans e costas nuas. Ao
aparecer nas ruas dirigindo um automóvel - um ford 29 (baratinha) que
compra no Rio de Janeiro com dinheiro do próprio trabalho - promove um
escândalo. Choca mais uma vez a sociedade ao recusar um pedido de
casamento e ao ir morar sozinha, na casa de número 157 da rua Seridó.
O preço da "ousadia" acaba sendo alto. Júlia passa a ser excluída e
alvo de preconceito. Na rua, é perseguida pelas crianças, que entoam uma
cantoria assim: "Júlia Medeiros no seu carro ford, virou a princesa do
caritó".
Antes de aposentar-se como professora, em 1958, se
candidata a vereadora, sendo eleita para dois mandatos, de 1951 a 1954 e
de 1954 a 1957. É nesse período que começa a apresentar lapsos de
memória e a ficar perturbada mentalmente. Em 1960, a família a leva para
Natal, entendendo ser essa a melhor opção. Júlia passa a morar sozinha,
por vontade própria, em uma casa de frente para o rio Potengi, na rua
da Misericórdia. Seu quadro de saúde vai se agravando e, na madrugada do
dia 29 de agosto de 1972, aos 76 anos, morre como a mendiga
Rocas-Quintas. Louca, pobre, esquecida e insultada; excluída da
sociedade e da história.
...fonte...
Itaércio Porpino
(Jornal Tribuna do Norte, edição do dia 18 de setembro de 2005)
www.potiguarte.blogspot.com
www.soltonacidade.com.br
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Os direitos autorais são protegidos pela Lei nº 9.610/98, violá-los é crime!
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